Nota Sobre o Problema do Sofrimento

Parte 1

Uma das questões que levam muitas pessoas a duvidarem da existência de Deus ou de Sua onibenevolência é a constatação de que coisas ruins acontecem às pessoas que julgamos serem boas. Gostaria de tecer alguns comentários a esse respeito.

Quando uma pessoa vem à existência, ela não surge por merecimento, mas sim porque aquele que a criou assim desejou, supondo que ela foi criada. Sua existência é resultante de uma graça que lhe foi concedida, assim como a continuidade da sua existência é uma coletânea de graças, que lhe é concedida a cada instante que vive.

A vida, assim, não é algo que nos pertence, já que não é algo que nos demos a nós mesmos. É algo que recebemos, tal qual em um ato não de justiça, mas de caridade, isto é, de amor. Por isso, não há sentido falarmos que a vida de um inocente foi injustamente tirada, uma vez que nenhuma vida foi justamente dada.

Ninguém possui mais méritos de existir que o outro. Não importa o quanto esse ser seja inocente ou perverso. A existência de cada um de nós é resultado de uma só ação: a graça de Deus. Não obstante a morte de uma pessoa que julgamos boa se dê em trágicas circunstâncias, ela não pode ser encarada como uma má ação por parte de quem lhe concedeu a graça de existir, mas sim como a interrupção dessa mesma graça, que permitia a existência daquela pessoa, cuja vida foi interrompida. Seu fim, portanto, não se deve a algo que lhe foi tirado, mas a algo que lhe foi deixado de ser dado gratuitamente.

Além disto, só julgamos que alguém é mal, por permitir o sofrimento, porque pressupomos que um ser bom significa, dentre tantas coisas, aquele que evita o sofrimento. Ou seja, que não existe, nem pode existir, nenhuma razão moralmente justificável para se permitir o sofrimento na vida de pessoas boas, como se sofrimento fosse, em si, algo mau, o que significa dizer que, seu contrário, o prazer, seria por definição algo bom.

A questão que devemos fazer é a seguinte: tal pressuposto é verdadeiro? A experiência de vida nos responde essa pergunta de maneira clara: basta ver o caso dos usuários de crack, cuja única maneira de sair de sua miserável vida é por meio do sofrimento de ter de abandonar um prazer que lhes conduz à morte.

Parte 2

“Se Deus pode impedir um homem de estuprar uma criança, por que não faz?”, se indaga o cético. “Se não o faz, é porque não existe; e, se existe, é porque é mau”, assim conclui o incrédulo.

Porém, devemos nos indagar: Se o mal devesse ser evitado em um caso, por que não em todos os outros? Se não devesse ser evitado em todos os casos, por que permiti-lo em outros? E se, por hipótese, se impedisse que todo homem escolhesse praticar o mal, como seria possível existir homens que escolhessem praticar o bem, uma vez que só é possível existir a escolha pelo bem na possibilidade de existir a escolha pelo mal, pois um não existe sem o outro?

Ora, se Deus devesse impedir um homem de praticar o mal, consoante raciocínio do cético, também deveria evitar que todos os homens fossem impedidos de praticá-lo. No entanto, uma vez impedidos de praticarem o mal, seriam igualmente impedidos de praticarem o bem, consequentemente, não poderiam ser o que são, ou seja, criaturas livres, dotadas de livre arbítrio.

É bem verdade que Deus tem o poder de impedir que um homem estupre uma criança. Porém, ainda mais verdadeiro é que o mesmo Deus dotou o estuprador do poder de impedir que ele próprio a estupre. Assim, se o estupro não é evitado por Deus, foi porque primeiramente não foi impedido pelo estuprador.

Desse modo, a questão que o cético se faz deveria ser reformulada de modo a ser feita da seguinte maneira: Se o estuprador tem o poder de impedir o estupro por que não o faz? Se não o faz, então, por que Deus deveria fazê-lo?